Face escura à fantasia de Márquez

 Face escura à fantasia de Márquez


García Márquez revela sua face jornalística ao narrar os sequestros na Colômbia dos anos 1990 em “Notícia de um Sequestro”

Por Pedro Emanuel Bernardino

Gabriel García Márquez, autor colombiano, celebrado mundialmente por livros como “Cem Anos de Solidão” e “Crônica de uma Morte Anunciada”, publica a primeira edição de “Noticia de un secuestro” em 1996. Da face na qual o autor apresenta-se neste livro, pode remeter certa desconfiança a quem conheceu-lhe através do “realismo fantástico”. Justamente  por sua adaptabilidade, qual praticada enquanto jornalista em 1949, é que o leitor possa pressupor estar lendo um livro ficcional.


Diferente de “Cem Anos de Solidão”, livro o qual rendeu-lhe às semelhanças estilísticas do “realismo fantástico”, este livro é calcado em uma narrativa “não-ficcional”. Embora não seja menos característico dos recursos narrativos que consagraram Gabriel García Márquez. Respaldado pelas conjunturas contextuais de sua época, o autor discorre em linearidade temporal as ocorrências que englobam àquela trama colombiana.


Dada à luz, a tal trama acompanha os sequestros de jornalistas conterrâneos, como Maruja Pachón e Diana Turbay, sequenciada pelos factos que enveredar-se politicamente aos sequestrados. Os reféns, como narrado pelo autor, são figuras notórias à sociedade, quase sempre remetidos à quem dá as cartas no debate público e político, e seu resgate pauta-se para recorrer, em termos burocráticos, às decisões legislativas contra Pablo Escobar. Como por exemplo Luis Alberto Villamizar, cônjuge de Maruja que, em 1986, aprova na Câmara dos Representantes da Colômbia o Estatuto Nacional de Narcóticos, na tentativa de limitar o poder de Pablo Escobar e do cartel de cocaína de Medellín.


Convidado por Maruja e Alberto Villamizar, em outubro de 1993, o autor escreveu este livro apoiado nas experiências pessoais de Maruja e dos demais envolvidos. No caso de Maruja Pachón, uma das últimas pessoas libertadas, e que sofreu seu cárcere durante seis meses, a narrativa escolhida acompanha as diligências públicas em que empenham-se à libertação. As decisões das repartições colombianas, sob a vigília de um incessante debate, que nem sempre floresceram em bons frutos, entre as autoridades, viesadas pelo presidente da república, César Gaviria, e os extraditáveis de Pablo Escobar.


Faz-se interessante, como complemento, abordar que, em dado ponto enredado, o autor utiliza de um recurso valoroso. Dissolvendo, ou melhor, aprofundando a abordagem sob os sequestradores do M-19, o autor revela ainda que o medo daqueles indivíduos não os tornaram menos humanos e, ao mesmo tempo que vis, eram dotados de algo como compaixão sob seus reféns, arraigados pela religiosidade que os eventos demandavam, junta à cumplicidade alheia entre os mesmos.


Colocações estas que revelam ao leitor um profundo medo relacionado à tarefa dos extraditáveis, que apesar de serem submetidos às ordens de Pablo Escobar, ainda são humanos, e García Márquez não falha em revelar-lhes esta faceta. Como por exemplo seu apelo religioso em que os conceitua o autor, atribuindo-lhes suas rezas diárias, que imploravam para que a Providência Divina concedesse-lhes sua proteção e misericórdia, ainda que banhados de uma devoção pervertida, na qual endossavam-lhes suas promessas e seus votos para que os mesmos tivessem êxito nos seus atos criminosos, condenáveis aos olhos dos homens.


Podem-se destacar, ainda, para além da estilística que tanto marca as obras de Gabriel García Márquez, um dos momentos em que predomina-se o êxtase da trama, retrata-se o fracasso do resgate de um dos reféns, e enquanto o presidente da república reflete sobre as sucessões de uma possível resolução pacífica, é surpreendido pela mãe de uma refém, que culpa-lhe pela morte da filha. Neste momento, sente-se o pesaroso sentimento da responsabilidade sobre a vida daquelas pessoas, e como tal responsabilidade recai no colo do presidente colombiano, César Gaviria, balançando-se à consciência do mesmo quando a vida de Diana Turbay, ceifada em uma infrutífera tentativa de resgate, ocasionando-lhe a morte por uma bala perdida.


Do mesmo modo, talvez “Notícia de um Sequestro” intrigue o leitor, que como este resenhista, acostumou-se a atribuir à figura de um autor um único retrato lúcido à única face textual possível, assim como Gabriel García Márquez, que à tarefa, bem sucedida, de explorar suas possibilidades de finalidade discursiva, camufla-se pelo propósito do texto referido, uma narrativa não-ficcional que, como mencionado no início desta resenha, poderá, ainda causar-lhe aos leitores desavisados, ou distraídos, certo estranhamento. Afinal, quem o conheceu através do “realismo fantástico”, deu-se a atribuir a estilística e a ficção.


Título: Notícia de um sequestro

Autor(es): Gabriel García Márquez ; Tradução de Artur Guerra, Cristina Rodriguez

Publicação: Lisboa : Círculo de Leitores, 1997

Descrição física: 226 p. 25 cm

Notas: O exemplar contém o "ex-libris" de Álamo Oliveira

ISBN/ISSN: ISBN 972-42-1478-8




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